Era domingo de futebol. Quando Diallo chegou parecia que levava ele a bola no tambor do revólver e a mira na baliza. Entre duas centenas de pessoas, o senegalês de 60 anos, calvo, vestido com fato de treino do FC Porto, era a estrela. "Diallo!?" – grita um adepto incrédulo. E não sabendo se o devia tocar, acabou por dizer: "Reconheci-o logo! Há mais de 30 anos que não o via. No tempo em que este homem jogava no Barreirense, muitos dos que aqui estão hoje nem davam para apanha-bolas".
Nesse mesmo momento ouviu-se uma salva de gritos vitoriosos: "Golo!" O FC Barreirense empurrou a primeira bola para o fundo da baliza do Desportivo de Portugal. Sentiu-se o desaire no grupo de jovens do bairro crítico do Vale da Amoreira (Baixa da Banheira) que apoiavam a sua equipa, a jogar em casa. Ficaram em silêncio. O forte aparato policial fazia conter os nervos para que, de resto, pairasse apenas no ar o fumo e o cheiro das bifanas assadas.
"Já não dá para dar um pico, já não dá para fazer um movimento brusco, mas de vez em quando faço alguma coisa que os putos dizem: ‘oh, sr. mister, que é isto!?’ Quem sabe nunca esquece" – conta Diallo.
Em 1978, o ponta-de-lança era o mais bem pago do Barreirense: 27 500 escudos (o equivalente a 138 euros) de ordenado, mais 90 contos (450 euros) por fora. Foi essa a 24ª e última época (1978/79) que o clube esteve na 1ª divisão. Hoje, 33 anos depois, joga na 1ª distrital de Setúbal e com a ‘casa às costas’, em campos emprestados, já que o Estádio D. Manuel de Mello foi vendido e abatido por retroescavadoras. "Mete pena ver o Barreirense a jogar contra o Desportivo", lamenta o senegalês, apesar do jogo ter terminado com a vitória clara, por 3-0. "O mito do Barreirense sempre existiu. O Barreiro e arredores eram a segunda casa do Benfica, eram um viveiro de jogadores".
Vivo, para provar o mito, aos 73 anos José Augusto faz as contas ao passado glorioso: "O Barreirense forneceu ao Benfica mais de 50 jogadores de futebol". Ele próprio ajudou a encher o Estádio da Luz durante 11 épocas e depois como técnico dos encarnados. Já na Selecção Nacional, primeiro foi ao Mundial de Inglaterra de 1966. Depois, já seleccionador, levou a equipa das Quinas à minicopa do Brasil.
A GRANDE TRANSFERÊNCIA
Quando em 1959 José Augusto foi para o Benfica, os encarnados pagaram um valor elevado para a época – 550 contos (2745 euros) – ao Barreirense. "Os dirigentes importavam-se com a vivência familiar dos jogadores. Se os pais tinham uma vida precária, havia apoios alimentares e de emprego".
O Barreirense era portentoso. "Havia sucesso com as mulheres mas não era como hoje. Elas telefonavam lá para o campo e pediam para falar com os jogadores" – conta ao 67 anos o ex--defesa central António Bandeira. "Às vezes pediam para falar comigo. Mas não tenho histórias, comecei a namorar a minha mulher muito cedo".
Barreiro é a cidade da revolução industrial portuguesa, pelas mão de Alfredo da Silva, o pai da CUF. Mais tarde, nos anos 60 e 70, com o associativismo no auge, a cidade fervilhava.
CHALANA E O FUTEBOL DE RUA
Fernando Chalana, 52 anos, conta que havia muitos miúdos a jogar à bola na rua, havia espaço. "Antes do 25 de Abril o que fazíamos era jogar futebol – só parávamos quando a GNR nos ia roubar a bola". Na rua é que se destacavam. "Os clubes da terra – Barreirense, CUF e Luso – punham os treinadores das camadas jovens a ver os miúdos jogar para escolherem os melhores", conta Adolfo Calisto, 67 anos, ex-jogador benfiquista.
Os tempos mudaram. "A construção civil matou os campos de futebol. O tempo avançou e as estruturas [dos clubes] permaneceram as mesmas. O Barreirense foi delapidado por má gestão. Neste centenário vamos estar ao nível de há cem anos" – diz José Augusto.
Prossegue Adolfo explicando que, nos tempos áureos do Barreirense, os jogadores saiam já seniores consagrados. "Agora vão em maior número para os grandes clubes, só que são mais novos e ficam-se pelo caminho". Rui Baião e Hugo Cunha (já falecido) foram dos últimos a chegar à primeira categoria.
Em 1974, o treinador de Chalana percebeu que estava perante um prodígio. Tinha 14 anos. Dos juniores subiu aos seniores. Até que, num jogo oficial, Mário Coluna – avisado pelo guarda-redes benfiquista Bento (outro ex-Barreirense) – o foi ver e alertou a direcção do clube encarnado. A transferência valeu 400 contos (1995 euros) ao Barreirense. "Sentia-me pequenino ao lado do Bento. Íamos no carro dele, ou no Jaguar do Vítor Baptista, para a Luz. Eu ia calado". No balneário benfiquista, o grupo da Margem Sul do Tejo era forte.
O ex-guarda-redes Neno recorda os anos a seguir: "Na carrinha do Bento ia eu, o Jorge Silva, o Zé Luís, o Nunes, o Diamantino e o Carlos Manuel." Neno, 48 anos, foi durante sete anos titular do Barreirense. Quando surgiu a proposta de transferência para o Benfica, os sócios opuseram-se. Só mudou um ano depois. Mas nem todos se tornaram profissionais. Aos 52 anos, Albertino Dias conta que treinou com Neno e que naquela altura poucos conseguiam viver do futebol. "Nos juniores pagavam-nos 30 escudos (15 cêntimos) de prémio de jogo. Dava para uma sandes".
Hoje, é a escola de formação de basquetebol que prossegue a mística. "Nos últimos seis anos foi o clube que mais títulos ganhou e que mais jogadores deu às selecções todas. E tivemos um jogador em 57º no ranking para a NBA – o João ‘Betinho’ Gomes", explica o presidente do Basquetebol do Barreirense, António Libório. O capitão de equipa, Hugo Pedrosa, 29 anos, considera que "não há nenhum jogador de básquete em Portugal que não quisesse jogar no Barreirense".
Acontece que os salários falam por si. "Os nossos jogadores ganham de 75 euros a 600 e o melhor americano do campeonato, Tyrone Curnell, ganha mil dólares (700 euros). No Benfica ninguém ganha menos de 2000 euros" – lamenta Libório. "As regras do basquetebol mudaram no ano passado. O mítico ginásio do Barreirense dificilmente ficará regulamentado para a prática da modalidade. Se não nos deixarem jogar no ginásio vão acabar connosco. Esperamos que haja um regime de excepção". O que dizer depois da fábrica de jogadores?
CENTENÁRIO SEM DÍVIDAS
Amanhã comemora-se o centenário da fundação do FC Barreirense numa cessão solene, às 21h00, no ginásio-sede do clube, com a presença do secretário de Estado do Desporto, Laurentino Dias.
"O Barreirense não tem dívidas e é credor. Quando foram alienados os campos D. Manuel de Mello e parte do da Verderena, foi feita a escritura mas o Barreirense não recebeu o dinheiro", explica António Libório, vice-presidente do clube. "Fizemos um acordo judicial que está a ser cumprido em tranches."
NOTAS
ESTÁDIO
O Estádio D. Manuel de Mello, no centro do Barreiro, foi demolido em 2008 para saldar as dívidas do clube.
CAMPO
O Barreirense não tem onde jogar. Em Maio será inaugurado o novo campo, orçado em 700 mil euros.
ACADEMIA
A Academia de Futebol do Barreirense tem 250 crianças nas escolas. Vai ter três campos sintéticos.
Fonte: Correio da Manhã
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